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  • Erika Pallottino

Sobre a tristeza do luto


Esses dias eu tive um almoço de família. A minha família é grande e barulhenta, mas nesse dia tinha pouca gente.

Achei bom que fosse assim, pois junto de nós estava uma tia muito querida, mas também muito enlutada.

A dor saltava pelos seus olhos, pela sua postura.

O marido dela, um tio também bem querido, morreu há 2 meses mais ou menos. Eles eram um casal afinado, integrado, viviam no mesmo ritmo, tinham uma comunhão e uma parceria muito especial. Conectados, estavam sempre juntos, sorrindo, brincando, amorosamente contando sobre os feitos dos filhos. Um era parte do outro.

Sabe aquele tanto de tempo de vida dividida que acaba sendo sua, a minha vida, e a minha, sua vida? Então, eles eram assim. Metade de um em cada parte do outro.

A parte dele era dela e vice versa. Estavam sempre juntos.

Desde o dia da morte do meu tio, a dor da minha tia me comoveu profundamente. Talvez pelo meu momento atual, fiquei absolutamente tocada pela sensação de desamparo profundo, de dor aguda, de fragilidade no olhar, no corpo, nos trejeitos dela.

A dor faz isso: torna a gente pequeno. O mais forte dos homens parece diminuir de tamanho quando sente dor.

Nesse almoço, reencontrei a mesma dor ao reencontrar a minha tia. A dor estava lá. Agora, a parte dele que há nela, é feita desse tipo de dor. Uma dor que toca, que mobiliza, que angustia. Uma dor que se torna um pouco nossa pela ameaça de um dia ser apresentada a ela.

Eu acredito que todos nós vamos ter um dia a companhia dessa, que parece ser a pior dor do mundo: a dor da perda de quem traz profundo sentido para a nossa existência.

Seja pela perda do marido, do filho, do pai, do irmão, daquele que julgamos indispensáveis.

A dor chega rasgando e rasga um pouco também, quem dela é, expectador.

Olho para a minha tia e não encontro o brilho no olhar, o sorriso alegre, a delicadeza e a doçura em sua fala mansa. Olho para ela e só encontro saudade. Olho, e também encontro medo. Olho, e encontro incredulidade. Olho, e encontro solidão.

Os meus primos estão por perto, algumas pessoas oferecem suporte, ela não está só. Mas está.

A dor do luto é feita também disso, da capacidade de nos desviar do caminho seguro, das certezas do mundo, do plano traçado.

A dor do luto grita no vazio e retorna em eco de desamparo.

Mas o luto não é feito só desse desajustamento, dessa desadaptação. Ele também é feito do refazimento da busca pelo sentido, da possibilidade de ressignificação do mundo interno que, altera e alterna a percepção do mundo externo.

O luto é feito também da possibilidade de revisão dos nossos principais organizadores mentais. Ele torna e retorna a perpassar pelo sistema social, afetivo, intelectual e espiritual. A sua travessia acontece em tudo o que nos faz ser nós mesmos.

Eu gosto de pensar que o trabalho do luto é, rearrumar de um outro jeito o nosso funcionamento habitual. Ele é feito desse remexer de dor por dentro de nós, ele bagunça tudo mesmo.

É o que hoje essa querida tia vive, o remexer e o bagunçar inconstante do seu mundo interior, afetivo, íntimo.

Mundo deles dois que está em desordem. Ela parece não conseguir encontrar lugar para realocá-lo em sua vida. Esse é o árduo caminho do trabalho do enlutado: realocar o ser amado, mesmo e apesar da sua ausência.

Sem aquele que amamos por perto, nos sentimos, muitas vezes "desamados". É a dor da falta do olhar, do toque, do desejo. É a dor de não ser mais visto.

Que os blocos possam ir se recolocando, que novas construções afetivas possam ir surgindo, que a força dessa linda história se torne mais do que a dor da saudade, mas a bela história de uma vida com sentido, plena de amorosidade.

Existe o tempo da dor, da falta, mas também do refazimento e do reajustamento.

Que ele não tarde a chegar, querida tia.


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