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  • Erika Pallottino

Luto, neurociências e os vínculos contínuos


Eu bem que queria, mas não consigo acreditar em alma ou em espíritos. E sei muito bem que não viramos estrela quando morremos. Mas isso não significa que eu não possa crer – racionalmente – que a vida transcende a morte – Eu vou morrer, papai? A pergunta veio de sopetão, da minha filha de 3 anos. Eu sabia que ela viria um dia – e temia esse momento desde antes mesmo de ela nascer (medroso da morte que sou). Afinal, sou um sujeito materialista: cresci sem religião, aprendi cedo a amar a ciência. Na minha visão de mundo, não há espaço para a transcendência da alma. Aliás, não há alma. Aprendi a acreditar que nossa consciência emerge do funcionamento de nossas células, nossos órgãos, nossos tecidos. Quando esse funcionamento cessa, cessa a consciência também, uai. Acredito também que não se deve mentir para as crianças – esconder verdades só serve para gerar medos, traumas, tabus. Então, não havia outra resposta possível: – Vai – eu disse. Ela caiu no choro. Reclamou que “morrer é chato”. Concordei, garanti que ainda tínhamos muito tempo para viver (ela bem mais que eu), sugeri que aproveitássemos bastante. Ela não gostou desse fato da vida, mas digeriu a notícia e, já no dia seguinte, parecia conformada (“todo mundo morre, né papai?”). Nos dias que se seguiram, respondi a muitas outras perguntas sobre a morte e a vida – ela ouvia atentas às respostas, sem chorar. Um dia, quis saber se era verdade o que lhe haviam contado sobre um médico que ela adorava, cuja morte precoce havia nos chocado: – Ele virou estrelinha, papai? Apesar das minhas convicções, faltou-me coragem para desmentir, por mais que me soasse absurda a ideia de que alguém, ao morrer, ressurja transformado em combustível de explosão nuclear a milhares de anos-luz da Terra (sem falar que é o tipo de destino que eu não desejaria para ninguém). Mas como dizer à minha filha que alguém que ela amava havia desaparecido do mundo? A resposta surgiu óbvia para mim uns dias depois: claro que ele não havia desaparecido do mundo. Aquele médico querido não virou estrela, virou algo ainda mais maravilhoso e impressionante: solo. Virou vida. Enfim, não é preciso acreditar em espíritos para crer que a vida segue após a morte – basta compreender biologia e geologia. A matéria de quem morre converte-se em terra – em Terra – e segue existindo para sempre, de ser em ser, como parte da consciência do Universo. Não é incrível? Contei a novidade à minha filha. Ela, que adora cuidar do jardim, entendeu. Há muitas pesquisas que mostram que pessoas capazes de acreditar na transcendência da vida são, no geral, mais felizes, mais saudáveis e mais capazes de se recuperar de grandes tragédias. Isso ajuda a entender por que quem tem religião costuma viver mais e melhor. É o que desejo para os meus filhos, claro, o que não significa que eu vá dizer a eles coisas nas quais não acredito. Acontece que ser religioso não é o único caminho para crer em transcendência. Mesmo numa perspectiva totalmente racional, científica, há muitos indícios de que nossa vida segue após a morte. Continuamos existindo nos outros: e não digo isso de maneira simbólica ou poética, mas em sentido absolutamente literal. Quando construímos uma relação com outra pessoa, essa pessoa modifica as conexões do nosso cérebro. Amar alguém muda fisicamente aquilo que nós somos. E, ao lembrarmos de alguém que amamos, ativamos redes neurais idênticas àquelas que disparam quando nos encontramos com essa pessoa. Então, seguir amando e lembrando de alguém depois de sua morte é verdadeiramente um jeito de prolongar sua existência – prolongar concretamente, na forma de conexões químicas entre nossos neurônios. Aprendi muito sobre isso com um amigo querido que enfrentou alguns anos atrás a dor terrível da morte de uma filha. Depois da tragédia, sempre que encontro esse amigo, ele me conta histórias sobre a filha, a Bianca. Desajeitado que sou com essas coisas, no início ficava meio sem saber como reagir – devo mudar de assunto para não fazê-lo sofrer? Com o tempo percebi que não. Passei inclusive a alimentar essas conversas, a perguntar sobre Bianca. Notei que ele sempre fala da filha no presente: “ela é”, não “ela era”. A relação dos dois não foi interrompida pela morte dela: Bianca seguiu presente não apenas no cérebro do meu amigo, mas na casa dele, em sua vida, em cada hora de seu dia. Eles inclusive se encontram de tempos em tempos, em sonho. Os neurônios do meu amigo seguiram conectados à existência dela, o que significa, de verdade, que ela seguiu existindo. Esse é só um entre vários exemplos de marcas que uma pessoa deixa no mundo ao viver – tem também as coisas que ela construiu, as ideias que espalhou, as lembranças que deixou. Quando alguém morre, é possível fazer a escolha de seguir acreditando que essa pessoa continua existindo nessas marcas – seguir nutrindo a relação, cultivando a conexão, convivendo com as memórias. Não é preciso acreditar em espíritos para se espiritualizar: para acrescentar transcendência e sentido à existência. É possível ser perfeitamente cético e, ao mesmo tempo, confiar na eternidade. Aliás, não é só possível: é provavelmente a coisa mais racional a se fazer.

Denis R. Burgierman é jornalista e escreveu livros como “O Fim da Guerra”, sobre políticas de drogas, e “Piratas no Fim do Mundo”, sobre a caça às baleias na Antártica. Foi diretor de redação de revistas como “Superinteressante” e “Vida Simples”, e comandou a curadoria do TEDxAmazônia, em 2010. Escreve semanalmente, às sextas-feiras, sobre a vida e suas complexidades. Link para matéria: https://www.nexojornal.com.br/colunistas/2017/Reflex%C3%B5es-materialistas-sobre-a-morte-e-o-que-vem-depois-dela © 2017 | Todos os direitos deste material são reservados ao NEXO JORNAL LTDA., conforme a Lei nº 9.610/98. A sua publicação, redistribuição, transmissão e reescrita sem autorização prévia é proibida.

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